Em entrevista para a APC, Carlos Afonso, diretor do Nupef, defende necessidade de "um plano público que busque a conectividade universal e os meios de acesso para todos"
A Association for Progressive Communications (APC), uma das principais organizações do setor no plano internacional, destacou em seu site este mês entrevista realizada com Carlo Afonso, diretor do Nupef. Na conversa, CA, como também é histórica e carinhosamente conhecido, falou sobre seu ingresso no Hall da Fama da Internet e sobre suas esperanças para a Internet no Brasil, além de compartilhar um pouco de sua trajetória e perspectivas para o tema.
Confira a seguir a versão em português da entrevista. O original pode ser acessado aqui.
1.A citação oficial ao Hall da Fama resume sua ilustre carreira ao longo das décadas. De qual conquista você mais se orgulha?
Eu vejo isso como uma totalidade histórica e não é simples apontar um momento, mas acho que a decisão de trazer um computador doméstico para o Brasil conosco quando minha família voltou ao Brasil do exílio em 1980 com a ideia de usá-lo para processar dados para movimentos sociais, juntamente com a criação do IBASE com o foco de democratizar a informação para democratizar a sociedade (o Brasil ainda era uma ditadura militar) foi fundamental.
2. Você foi cofundador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) em 1981 e da Associação para o Progresso das Comunicações (APC) em 1990. Como você vê o papel deles hoje em comparação com sua visão inicial para eles?
O IBASE deixou sua atividade pioneira de desenvolver comunicações em rede e concentrou-se na produção, processamento e disseminação de informações, além de apoiar movimentos sociais com ações de formação e empoderamento. A APC cresceu muito além dos nossos sonhos da época e levou sua ideia original de construir redes engajadas a um nível muito superior, sendo reconhecida por todos os fóruns internacionais relevantes pela qualidade e relevância de suas atividades. Eu acho que eles continuam a fazer a coisa certa de maneira eficaz, então deixemos que continuem seu bom trabalho.
3.Como diretor executivo do Nupef, o que você espera ver no Brasil em relação à Internet e outros direitos fundamentais?
O Brasil é um caso histórico bem conhecido e interessante de sucesso em aspectos importantes do desenvolvimento da Internet, tanto em termos técnicos quanto em relação a muitos aspectos da governança da Internet. Por meio do IBASE, de outras ONGs e da academia, nos envolvemos nesses processos desde o início. Alguns marcos cruciais:
- o envolvimento em 1992 do IBASE (através de seu serviço Alternex) e da APC no desenvolvimento da Internet no Rio de Janeiro para a conferência da ONU Eco'92 -- isso ajudou crucialmente a trazer as primeiras conexões permanentes de Internet para o Brasil;
- a criação, em 1995, do primeiro órgão multissetorial de governança da Internet (CGI.br), em uma época em que nem a noção de governança da rede existia em lugar algum e no Brasil a Internet ainda era incipiente;
- a formulação pelo CGI.br em 2009 por consenso de uma carta de princípios de governança da Internet (os 10 Princípios para a Governança e Uso da Internet) que nenhum outro país havia desenvolvido na época; lembremos que o CGI.br é um comitê multissetorial que inclui governo, sociedade civil, academia e empresariado;
- o processo multissetorial de construção da proposta de um marco de direitos civis para a Internet no Brasil, que se tornou lei federal (o Marco Civil da Internet, sancionado em 2014), também o primeiro do gênero no mundo;
- a sanção da Lei de Acesso à Informação em 2011 e da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais em 2018, com relevante envolvimento da sociedade civil;
- o desenvolvimento dos pontos de troca de tráfego (IX.br) em todas as capitais e principais cidades do Brasil pelo NIC.br (braço operacional do CGI.br), a ponto de o IX de São Paulo ser o maior do mundo em termos de tráfego e número de redes conectadas, atendendo mais de 2.300 sistemas autônomos com picos de mais de 15 Tbit/s.
Os marcos, porém, não significam que a Internet esteja disponível com a qualidade, permanência e acessibilidade necessárias para todas as famílias do país – longe disso –, embora tenhamos avanços significativos principalmente nas grandes cidades. No entanto, em quase todas as regiões metropolitanas há desigualdade de acesso, mesmo nas cidades mais ricas. No interior, essa desigualdade, precariedade (ou inexistência total) de acesso exige uma grande política pública de universalização do acesso.
Isso significa fornecer acesso permanente e de qualidade a todas as escolas, todos os centros de saúde, todos os governos locais e todas as famílias, onde quer que estejam. Alcançar isto é um grande objetivo estratégico para o país, que irá capacitar as famílias e reforçar os seus direitos, particularmente o seu direito de participação, de se envolverem na vida social quotidiana numa situação evolutiva em que cada vez mais não estar bem conectado significa não ser um cidadão com plenos direitos.
4. Você esteve envolvido com a APC quando ela ajudou a configurar o primeiro link de e-mail com Cuba durante o bloqueio americano no início dos anos 1990. Existe uma intervenção radical que você acha que é necessária hoje no mundo das TIC e da justiça social?
Continuo dizendo que precisamos defender fortemente um plano estratégico público significativo que busque a conectividade universal e garanta os meios de acesso (não apenas dispositivos terminais bem conectados, mas também formação adequada para enfrentar os desafios do mundo digital) a todos e todas. Enquanto isso, devemos continuar apoiando a implantação de redes comunitárias, sabendo que esta não é uma solução permanente, mas um "curativo" útil temporário para permitir que as comunidades obtenham acesso até que a conectividade total as alcance.
5. O que você gostaria que outras pessoas soubessem sobre o desenvolvimento da Internet?
Precisamos explicar nos processos de aprendizagem alguns detalhes importantes da rede, como sua estrutura em camadas, os diferentes agentes responsáveis por cada camada, os riscos envolvidos em participar de (ou mesmo apenas visitar) serviços baseados na Internet, a enorme diferença entre um determinado serviço (digamos, uma plataforma de rede social) e a Internet como um todo, e assim por diante. As pessoas precisam estar cientes das mudanças nas regulamentações e leis, e atualmente estamos em um labirinto de regulamentações nacionais e internacionais que confundem até mesmo um legislador bem informado.
6. A Internet é uma tecnologia relativamente jovem. Qual é a maior coisa que você espera que se torne ou faça na próxima década?
O cenário ideal (que beira o utópico) é uma Internet tão bem implantada em cada casa e escritório que as pessoas a darão como corriqueiro, como a eletricidade ou o abastecimento de água (em áreas em que esses serviços estão amplamente presentes). Estamos longe disso neste momento, e as desigualdades não vão desaparecer por muito tempo.
7. Dado o seu trabalho ao longo da vida em ajudar a desenvolver a Internet, que conselho você daria aos funcionários e membros da APC?
Seria muita ousadia da minha parte pontificar para a equipe e membros da APC, considerando o conjunto de experiências e a diversidade de atividades que esta comunidade acumulou. Se eu tivesse que mencionar algo, talvez fosse que ambos sempre reforçassem a noção de que cada um de nós faz parte de uma associação internacional bem-sucedida de organizações da sociedade civil, indivíduos e movimentos sociais, e que essa associação precisa estar sempre em contato com seus membros sobre seu processo de desenvolvimento e incidência. Não é uma coisa simples de fazer de forma eficaz, especialmente dada a escala atual da associação.
8. O que alguém pode se surpreender ao saber sobre você?
Adoro gatos, tenho uma relação difícil com cães, gosto de todos os tipos de vegetais e frutas, adoro dirigir um carro ou qualquer outro veículo, e... Gosto muito de hambúrgueres e cerveja, embora provavelmente já faça mais de dois anos que não como um -- maldita pandemia! :-)