Comentários sobre o andamento do WGEC
Carlos A. Afonso - 15 fev 2017 (*)
Este texto procura analisar a segunda reunião do Grupo de Trabalho sobre Cooperação Aprimorada (WGEC) da ONU, em sua segunda fase, realizada em Genebra de 26 a 27 de janeiro de 2017. Infelizmente, e apesar da paciência exemplar, dos esforços e da competência inequívoca do presidente (o embaixador brasileiro enedicto Fonseca), o grupo de trabalho praticamente não avançou em relação à primeira fase até agora. Estão previstas mais duas reuniões (em maio e em outubro), e espero que a dinâmica do grupo leve a resultados mais palpáveis.
Em essência, continuam as discussões sobre quais são os temas da cooperação aprimorada, com foco inicial nos que despertariam mais interesse dos governos ("high-level themes"). Na primeira fase produziu-se uma gigantesca (e ingerenciável, na minha opinião) planilha de tópicos ou temas, em que todo o universo das TICs cabia no conceito de cooperação aprimorada. A abordagem agora é mais realista, mas ainda não parece ir muito longe.
Continua também a dicotomia insuperável entre países de regimes autocráticos ou autoritários de um lado e países que, de um modo ou de outro, adotam a democracia representativa como sistema de governo. Insuperável porque o mantra dos primeiros é que a agenda de Túnis de 2005 já traz todos os elementos do que deve ser a cooperação aprimorada, e que esta cooperação, seja como for, deve ser um assunto exclusivo das relações multilaterais (entre governos), enquanto a maioria dos outros países insiste na importância de tratar o assunto como um esforço mundial multissetorial. Neste sentido, o consenso no âmbito do WGEC será impossível. Nesta segunda fase pelo menos um país autocrático teve forte voz ativa nas discussões, algo que estava fora do alcance do presidente impedir. No final, participava em igualdade de condições com os outros e tendo como referência o mantra já mencionado.
Tentativas de derivar da Agenda de Túnis (um "papiro" feito há onze anos) propostas palpáveis e relevantes sobre a cooperação aprimorada, para o propósito do WGEC, não podem ficar restritas aos parágrafos 69-71 da agenda. Muitas referências que afetam ou pertencem ao assunto são tratadas em vários parágrafos praticamente até o final do documento, e este de um modo ou de outro quase em sua totalidade relaciona-se à cooperação aprimorada.
A Agenda não pode ser tratada como a imutável Tábua dos Dez Mandamentos -- de fato, muitos dos tópicos da mesma foram motivados pela conjuntura ou estado de desenvolvimento das TICs em geral ou da Internet em especial na época, e onze anos de avanços nesses campos foram além da mais fértil imaginação. O documento retém sua importância como referência, mas necessita uma reformulação, adaptação, melhora em muitos de seus tópicos. Lembremos que a participação pluralista ou multissetorial em processos de TICs e o próprio conceito de governança da Internet eram recém-nascidos naquela data, e o fórum nela proposto com seus 12 objetivos (o IGF) ainda não tinha começado, nem sequer o entendimento da importância das estruturas já existentes de componentes da governança da Internet como a ICANN, a IETF e a estrutura de administração coordenada do endereçamento (os RIRs).
Minha proposta de abordagem do tema procura lembrar em primeiro lugar que os avanços colaborativos, os consensos (vinculativos ou não) em torno de princípios já conseguidos nos vários fóruns e iniciativas multilaterais ou multissetoriais internacionais (e nacionais que têm impacto internacional), já representam de um modo ou de outro práticas de cooperação aprimorada. Estas iniciativas são inúmeras, tanto no Brasil, com seu exemplo de impacto mundial do processo e sanção do Marco Civil, e internacionais, como os documentos do Encontro NETmundial, a declaração recente do Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC) que o acesso à Internet é um direito humano, entre muitas outras iniciativas coletivas ou interinstitucionais que reagem, diagnosticam, prevêem, propõem diretrizes, processos, princípios e métodos de organização. Em outras palavras, enquanto discutimos o assunto em mais uma rodada do WGEC, muitos grupos de indivíduos, organizações e governos já cooperam na prática.
O IGF também evoluiu, e podemos dizer que evoluiu além de si mesmo -- com a constituição de uma rede crescente de iniciativas nacionais e regionais preparatórias ou relacionadas ao IGF, ou motivadas por ele, debatendo, diagnosticando e até propondo recomendações em seus âmbitos. Um mapa dessa verdadeira rede de processos de diálogo sobre a governança da Internet, preparado por Marilyn Cade, mostra uma extensão, diversidade e relevância impossíveis de ignorar, em em si mesma é a maior razão para a continuidade do IGF. É verdade que essa rede ainda não tem uma interação efetiva entre todos os seus membros (IGFs nacionais e regionais), mas isso só depende de iniciativas das organizações envolvidas.
Uma tendência que aparece com mais força nesta segunda rodada do WGEC é a de constituir uma nova estrutura ou mesmo entidade internacional cuja missão seria tratar da cooperação aprimorada. Não há consenso sobre isso, ou mesmo sobre as características de uma eventual estrutura. Alguns países consideram que essa estrutura teria que ser intergovernamental e não multissetorial. Há divergência sobre a autoritatividade dessa estrutura -- deveria fazer recomendações, ou até mesmo acordos vinculantes? Se Há uma conclusão após as duas rodadas do grupo de trabalho, é que a lista de desafios é demasiado ampla para ser delegada a uma nova estrutura multilateral ou multissetorial.
Além disso, no ponto em que estamos nas discussões, como Wolfgang Kleinwächter e outros (APC, ISOC) têm enfatizado, por que não aproveitar de alguma forma a ampla rede do IGF acima descrita e nela inserir as questões referentes ao aprimoramento da cooperação intergovernamental e multissetorial? Afinal, quaisquer recomendações que o WGEC consiga produzir não serão vinculantes, do mesmo modo que não o são no IGF. Uma integração dos esforços de cooperação aprimorada com os processos e mesmo as estruturas do IGF daria mais força a este para seguir ampliando sua rede. Não excluo a possibilidade de outras formas de diálogo estruturado, foros sobre temas específicos (como de resto já existem vários), mas insisto no aproveitamente dessa rede de diálogo sobre governança que segue em evolução.
No diálogo do WGEC surgiu a questão da participação das instituições eixstentes no processo de cooperação aprimorada e até propostas de exclusão sob o argumento que são estruturas técnicas ou operacionais que não se envolvem no "policy-making" de que trata a cooperação aprimorada. Enfatizei que por princípio ninguém pode ser excluido. As atividades sob responsabilidade da ICANN, citada como um exemplo de entidade que não deveria participar, foram a principal razão para que o tema "recursos críticos da Internet" fosse a duras penas incluido como um dos temas principais já no segundo IGF em 2007, e sua natureza multissetorial (imperfeita, pode-se argumentar, mas quem é perfeito nesse cenário?) especialmente demonstrada durante a "transição IANA" já são justificativas suficientes para a participação da organização e seus constituintes. Tampouco pode ser excluida a UIT -- cuja relevância em termos de políticas para a Internet derivada de seu papel na implantação, regulação e utilização das infraestruturas de telecomunicação não pode ser minimizada. E assim é o IETF, as organizações de alcance internacional como APC e ISOC, e assim por diante.
Minha proposta para a continuidade do WGEC com vistas a recomendações é muito simples:
1. Abandonar a insistência em definir temas e deixar de lado a crença que a Agenda de Túnis é a Biblia a seguir e já contém todas as verdades.
2. Integrar o diálogo sobre os processos de cooperação aprimorada a redes institucionais (multissetoriais ou intergovernamentais) já existentes, em especial a rede do IGF, que hoje abrange dezenas de países em todas as regiões.
3. Avançar em propostas de estímulo ainda maior à expansão da rede do IGF em todos os níveis em que já está ocorrendo, já tendo a cooperação aprimorada como uma das trilhas ou temas centrais.
4. As iniciativas de criação de foros temáticos específicos por parte de governos e entidades não implica em deixar de lado a rede do IGF como o principal locus de diálogo sobre todos os temas da governança, incluindo a cooperação aprimorada.
Para terminar, reproduzo abaixo meu relato sobre a primeira rodada do WGEC em 2013. Pode-se notar que muitos dos pontos recomendados pelas entidades civis permanecem atuais, bem como a proposta dos governos do Brasil, México, Reino Unido e Suécia na época.
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Na primeira rodada do WGEC (2013), um grupo de entidades civis apresentou a proposta abaixo de recomendações que deveriam ser resultado do grupo de trabalho. Estam eram que o WGEC:
1- Reconhece que a Agenda de Tunis , se for para continuar como um ponto de referência para todos os interessados, deve ser considerada como um documento vivo que precisa ser atualizado para refletir os papéis e responsabilidades de todos os participantes;
2- Incentiva o repensar dos papéis das partes interessadas que estavam definidas pelos governos de forma unilateral na Agenda de Tunis, observando que esses papéis foram originalmente definidos pelos governos em dezembro de 2003 (Declaração de Princípios de Genebra);
3- Afirma que a Internet pertence a todos: todos podem usá-la e todos podem melhorá-la; isto também se aplica a sua governança;
4- Reconhece que a cooperação aprimorada está bem encaminhado de acordo com o pretendido nos parágrafos 67 a 75 da Agenda de Túnis;
5- Conclui que novos acordos multilaterais não são necessários para a cooperação aprimorada;
6- Reconhece que novos mecanismos surgem organicamente conforme o necessário e não há necessidade de impor novos mecanismos de cima para baixo;
7- Reconhece os esforços de vários mecanismos existentes para propor políticas públicas e entender a governança da Internet, tendo em conta sua natureza pluriparticipativa;
8- Felicita o IGF pelo seu trabalho de promoção da cooperação aprimorada conforme a Agenda de Túnis;
9- Incentiva o IGF a cobrir todas as questões de governança da Internet que são motivo de preocupação para as partes interessadas, bem como constituir grupos de discussão continuada como parte do IGF, com o objetivo de fazer recomendações sobre essas questões às comunidades participantes;
10- Incentiva o IGF a seguir as recomendações do Grupo de Trabalho da CSTD sobre Melhorias do IGF, incluindo o seu mandato para dar conselhos às organizações funcionais e administrativas da governança da Internet;
11- Incentiva aqueles que fazem as políticas públicas a participar mais plenamente do IGF e trazer para este suas questões relacionadas à Internet conforme seus mandatos;
12- Incentiva todos os governos a comprometerem-se com o IGF , e a usar o processo do IGF como uma oportunidade não apenas para envolverem-se com todos os outros interessados, mas como uma oportunidade de trabalhar uns com os outros em pé de igualdade ;
13- Convida todas as entidades de administração e de governança da Internet a participar do IGF;
14- Reforça a abordagem multissetorial e encoraja todas as partes interessadas a engajarem-se mais e a trabalhar com as organizações existentes, explorando formas em que o engajamento dos vários setores interessados possa ser melhorado.
Em resumo, o caminho é focar, focar, focar em um pequeno mas essencial conjunto de temas e tentar construir propostas para a cooperação entre nações (mais do que entre governos) em torno desses temas. De outro modo, o WGEC vai acabar reproduzindo as generalidades de boa parte da Agenda de Túnis e não teremos avançado quase nada.
Do lado dos governos, uma colaboração concreta para buscar esse foco veio dos governos do Brasil, México, Reino Unido e Suécia, que propõe:
- Os membros [da ONU] devem explorar formas de fortalecer a participação de todos os interessados de países em desenvolvimento nos fóruns globais existentes de governança da Internet, incluindo viabilizar mecanismos de financiamento e métodos de trabalho alternativos, tais como a participação remota.
- Os membros devem aumentar os esforços para capacitar os interessados a participar através da capacitação, incluindo, mas não limitado a, programas de treinamento, conscientização e compartilhamento de melhores práticas.
- Os membros devem trabalhar com os países em desenvolvimento para criar um quadro nacional justo e coerente que estimule a concorrência e crie o acesso a preços acessíveis para todos os interessados.
- O papel dos governos deve incluir, mas não se limitando a, capacitar os usuários de Internet, assegurar um quadro jurídico justo e coerente que é responsável, transparente e equitativo, bem como proteger os direitos humanos online, para promover uma robusta infraestrutura global de Internet apoiar processos e parcerias pluralistas.
Neste ponto, creio que a junção adequada das duas propostas pode ajudar muito a agilizar o processo decisório para o relatório final do WGEC.
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(*) O autor é um dos representantes da sociedade civil escolhidos pela ONU para participar desta rodada do WGEC, e recebe o apoio do CGI.br para essa participação.
Para mais informações sobre o grupo de trabalho: