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Carta Aberta da CDR ao IGF - tecno-autoritarismo no Brasil

Carta Aberta da CDR ao IGF - tecno-autoritarismo no BrasilBrasília, 17 de novembro de 2020

No contexto do IGF de 2020, as organizações que fazem parte da Coalizão Direitos na Rede dirigem-se publicamente à comunidade internacional de governança da Internet sobre o desenvolvimento de questões relacionadas à criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e desenvolvimentos recentes com relação à coleta maciça de dados pessoais de brasileiros e qualquer pessoa residente no país.

O Brasil tem sido conhecido como um bom caso em termos de estabelecimento de um padrão global de participação multissetorial em processos legislativos. Legislações como o Marco Civil da Internet e também a Lei Brasileira de Proteção de Dados representam processos nos quais as contribuições de todas as partes interessadas foram consideradas de maneira equitativa. Processos regulatórios como os já mencionados também tiveram sucesso ao levar em consideração os princípios dos direitos humanos, conforme refletido na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Infelizmente, iniciativas como a implantação acelerada de tecnologias de reconhecimento facial e coleta maciça e desproporcional de dados pessoais por meio da implantação de uma base de dados centralizada têm sido uma realidade no país em um cenário em que a ANPD ainda estava sendo discutida e implementada.

Ao final de 2019, um enorme banco de dados contendo informações biométricas e outras categorias de dados pessoais de cerca de 200 milhões de brasileiros foi criado pelo presidente Jair Bolsonaro. Os principais objetivos do banco de dados eram simplificar o compartilhamento de dados entre departamentos governamentais e melhorar a prestação de serviços públicos. Esta base de dados, denominada Cadastro-Base do Cidadão, será operada pela Secretaria de Governo Digital do Ministério da Economia e -- dependendo da categoria dos dados -- algumas informações podem não estar sujeitas a quaisquer restrições de acesso a ministérios e outras autoridades públicas.

Iniciativas como o Cadastro-Base do Cidadão podem ser preocupantes em um cenário de militarização desenfreada do governo que legitima a segurança macional e as atividades e discussões de inteligência como política pública prioritária. Essa narrativa é reforçada por incidentes como as recentes solicitações da Agência Brasileira de Inteligência pelos cadastros dos 76 milhões de brasileiros titulares de carteira de habilitação no amplo escopo de aquisição de informações contidas no banco de dados.

Além disso, as inconsistências entre o Cadastro-Base do Cidadão e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) -- que entrou em vigor em agosto de 2020, após várias tentativas de adiar a aplicação da lei devido a emergências como a pandemia de Covid-19 -- é algo que poderia reforçar possíveis assimetrias entre cidadãos/titulares de dados e o Estado.

Essas assimetrias são reforçadas pela suposta intenção do presidente de usar os dados como instrumento de poder. Recentemente, a Intercept Brasil relatou um sistema governamental de inteligência artificial/vigilância chamado Córtex, que usa a leitura de placas por milhares de câmeras rodoviárias espalhadas por rodovias, pontes, túneis, ruas e avenidas em todo o país para rastrear alvos em movimento em tempo real. Este sistema também pode acessar diversos bancos de dados com informações sigilosas de cidadãos e empresas e, com apenas alguns cliques, os operadores podem ter acesso aos dados cadastrais e trabalhistas que todas as empresas possuem de seus funcionários, incluindo RG, CPF, endereço, informações de dependentes, salário e posição.

Mais recentemente, o governo brasileiro emitiu um decreto presidencial responsável pela instalação e operacionalização da ANPD. Decorrido mais de um ano após a promulgação da lei responsável por incluir as disposições relativas à criação da Autoridade, o Conselho de Administração foi indicado pelo presidente e homologado pelo Senado Federal. Sobre a composição da diretoria da ANPD, vale ressaltar que os membros indicados podem ser sem precedentes, pois três dos cinco diretores fazem parte do Exército e possuem experiência em segurança cibernética e nacional.

Embora a disposição e distribuição dos mandatos do Conselho de Administração da ANPD entre as partes interessadas possa não ser a ideal, esta composição apenas enfatiza a necessidade de a Autoridade trabalhar com a sociedade civil e outros setores interessados ​​na formulação da política nacional sobre proteção da privacidade e dados pessoais. Sobre a política nacional e as instâncias participativas para as partes interessadas, a LGPD prevê ainda que seja implementado um Conselho Nacional de Privacidade e Proteção de Dados (CNPD), com assentos concedidos a todos os setores, como instância responsável por assessorar a ANPD nas orientações e contribuições.

Apesar dos procedimentos para a indicação e nomeação de representantes das partes interessadas ainda estarem em processo pela ANPD, é de extrema importância que o governo Brasileiro incentive a participação multissetorial e abstenha-se de interferir ou mesmo vetar quaisquer representantes indicados para a CNPD por motivos diferentes dos critérios declarados na legislação brasileira. Aqui, mais do que nunca, a diversidade de setores e as instâncias multiparticipativas devem ser garantidas para que a proteção de dados brasileira seja implementada de forma justa e transparente.

Os governos devem garantir que as tecnologias digitais emergentes tenham um impacto positivo na vida dos cidadãos, em vez de reforçar ou piorar as assimetrias de poder já existentes e enfraquecer os direitos. Neste contexto, são indiscutivelmente necessárias discussões em torno da moratória imediata à venda, transferência e uso de tecnologias de vigilância, em andamento no âmbito do ACNUR e no âmbito das atividades dos relatores de procedimentos especiais da ONU.

O uso da tecnologia para fins repressivos e autoritários é um fenômeno que representa sérias ameaças ao pleno gozo dos direitos humanos online e offline, como acesso à justiça, direito à privacidade, liberdade de associação e liberdade de movimento. A implementação de tecnologias voltadas para a identificação de indivíduos ou previsão do comportamento humano deve ser precedida de avaliações de impacto sobre os direitos humanos capazes de atestar os riscos e promover a confiança da sociedade.

Chamada à ação

O trabalho que a sociedade civil e outras partes interessadas realizaram para defender o direito dos cidadãos à privacidade e à proteção de dados em todo o mundo nos últimos anos não pode ser perdido.

Portanto, convidamos as autoridades brasileiras a:

  • Promover o respeito pelos direitos humanos, democracia e Estado de Direito na concepção, desenvolvimento e aquisição de iniciativas governamentais dedicadas à implementação de bases de dados centralizadas;
  • Implementar integralmente a ANPD, bem como reforçar seu compromisso em transformá-la em autoridade totalmente independente no prazo de dois anos, conforme previsto em lei;
  • que a ANPD mantenha seu compromisso com a participação de várias partes interessadas no Conselho Nacional de Privacidade e Proteção de Dados com diversidade suficiente de partes interessadas.
  • Supervisionar a implementação, venda, transferência e uso de tecnologias de vigilância no contexto de políticas públicas, bem como empregar mecanismos de avaliação de impacto adequados que defendam a importância dos direitos humanos e as limitações à sua plena realização causadas pela tecnologia de vigilância.

 

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