AlterNex 33 anos - um resumo histórico
por Carlos A. Afonso
Em 18 de julho de 2022, o AlterNex -- um serviço de comunicação e informação e o primeiro provedor de serviços Internet brasileiro, criado pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) -- completaria 33 anos. O IBASE, fundado em 1981 com a missão resumida no slogan "democratizar a informação para democratizar a sociedade", é uma entidade civil sem finalidade lucrativa, registrada como de utilidade pública federal e estadual (Rio de Janeiro), dedicada à pesquisa participativa, capacitação, consultoria e serviços à comunidade.
No início da década de 80 o IBASE foi a primeira entidade da sociedade civil a empregar microcomputadores para o processamento de informações, e participou das principais iniciativas conjuntas internacionais para a democratização da comunicação e informação. O IBASE foi também o berço da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida.
Este texto procura recordar como foi essa história pioneira, que foi fundamental para trazer e contribuir para consolidar a presença da Internet no Brasil.
Mas por onde e quando começou a Internet? É uma longa história, que depende dos critérios utilizados. Alguns consideram que tudo começou com o lançamento do primeiro Sputnik, em 1957, que motivou os Estados Unidos a criarem a DARPA (Defense Advanced Projects Agency); outros mais radicais preferem considerar o ponto de partida em torno do ano 3.000 AC, quando teria sido inventado o ábaco na Babilônia; os mais sensatos dividem-se entre a criação do conceito de rede por comutação de pacotes (1961), do Interface Message Processor (IMP, 1968), ou do TCP/IP (1974).
E no Brasil? Quando essa história começou? Há muito que contar, mas procuro aqui resumir alguns marcos históricos importantes, enfatizando que a Internet no país nasceu como resultado dos esforços de duas vertentes: a acadêmica, através da iniciativa da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), e das entidades civis, estas sob a liderança do IBASE -- ambas sob o olhar desconfiado e aturdido do monopólio estatal de telecomunicações da época, a Telebras.
Velletri é uma pequena cidade a uma hora de Roma. Entre 2 e 7 de outubro de 1984, lá reuniu-se um grupo de dez representantes de entidades civis com uma causa comum: a democratização da informação. Representavam organizações dedicadas a causas do desenvolvimento humano de várias regiões do planeta. Reconheciam que o surgimento das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) não só não podia ser ignorado pela sociedade civil, como deveria ser absorvido pela sociedade como instrumento de potencialização de suas capacidades e democratização do conhecimento.
A rede, batizada de Interdoc, formalizou seu mandato no Acordo de Velletri, em reunião organizada pelo Centro Internacional de Documentação e Comunicação (IDOC) de Roma (ver o texto anexo de Brian Murphy). O acordo de Velletri, assinado pelo IBASE, IDOC (Itália), CODESRIA (Senegal), DESCO (Perú), ILET (Chile), AMRC (Hong Kong) e outras entidades, continha uma declaração de princípios que sintetiza os conceitos definidores do que viria a ser a Internet como um espaço democrático de intercâmbio de conhecimento:
"O bem-estar de um indivíduo e de uma comunidade dependem de seu acesso a e da capacidade de aplicar informação. Isso é portanto central no processo de desenvolvimento de todas as sociedades... Os avanços recentes e rápidos das novas TICs abrem novas possibilidades para que as ONGs se comuniquem e compartam informações... essa rede global só tem um papel válido a desempenhar no desenvolvimento se for criada por, vinculada a e a serviço de atividades locais... É preciso destacar que o manejo de informação não é uma meta em si, mas apenas um elemento essencial na ação para lograr resultados e melhoras significativas na vida das pessoas. O manejo da informação e práticas relacionadas de trabalho colaborativo em rede precisam ser voltados à mobilização da informação, não a sua imobilização."
Um dos promotores mais ativos da rede Interdoc foi Henri-Charles Foubert, um missionário do IDOC que no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 trabalhou com as populações pobres das Filipinas. Foubert entendeu nessa experiência que o silêncio daqueles sofrimentos não era apenas fruto da opressão política e militar, mas também produto de uma impossibilidade de expressão e comunicação permitidas pela mídia.[1]
A rede Interdoc plantou a semente que resultoria na criação da rede mundial da Associação para o Progresso das Comunicações (APC), fundada em maio de 1990 em San Francisco, com a participação de várias entidades da rede, entre as quais o IBASE, com a ajuda imprescindível de entidades como o Institute for Global Communications (IGC), de San Francisco, e o GreenNet, de Londres, entre outras. Nessa época, entidades civis de vários países já trocavam mensagens de e-mail usando as redes de pacotes (como a RENPAC brasileira), ou sistemas de BBS (quadros de avisos eletrônicos) como a rede Fidonet. Hoje a APC congrega 62 membros institucionais e 29 individuais em 74 países e é uma organização-membro do Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da ONU.
Em parceria com o IGC, e com o apoio do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), da Agência Brasileira de Cooperação (ABC, do Ministério de Relações Exteriores) e outras entidades internacionais, o IBASE iniciou em forma experimental em 1988 um serviço de intercâmbio de informações via computador voltado à sociedade civil. O objetivo central era facilitar o acesso a informações em âmbito internacional para o trabalho das entidades da sociedade civil, a custo mínimo e em forma cooperativa e, na medida do possível, auto-suficiente -- ou seja, a partir da contribuição dos próprios participantes.
Com essa perspectiva, o serviço AlterNex entrou em operação definitiva, 24 horas por dia, a partir de 18 de julho de 1989, com conectividade via UUCP por discagem direta internacional (na época a única forma de conectividade viável em termos de custo para esse tipo de comunicação). Apoiado por entidades do Acordo de Velletri e da ONU, um servidor UNIX conectado à Internet nos EUA pelo protocolo UUCP abriu o acesso via linha discada e via RENPAC do serviço de intercâmbio de mensagens para uso das entidades civis. Esta seria a data simbólica de nascimento da Internet no Brasil. Nascia o primeiro centro de acesso à Internet no país desenvolvido e operado por uma entidade da sociedade civil, já que, via IGC, o AlterNex passava a possibilitar o intercâmbio de mensagens e arquivos com usuários da Internet e de outras redes internacionais.
Do lado da comunidade acadêmica, em 1988 já se formavam no Brasil alguns embriões independentes de redes, interligando grandes universidades e centros de pesquisa do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre aos Estados Unidos. Com o objetivo de integrar esses esforços e coordenar uma iniciativa nacional em redes no âmbito acadêmico, o Ministério da Ciência e Tecnologia formou um grupo composto por representantes do CNPq, FINEP, FAPESP, FAPERJ e FAPERGS, para discutir o tema. Como resultado, surge o projeto da RNP, formalmente lançado em setembro de 1989, com atuação limitada ao âmbito federal e internacional – nos estados iniciativas de redes estaduais integradas ao projeto nacional seriam estimuladas para a ampliação da capilaridade da rede. Assim, a RNP nascia no mesmo ano do AlterNex do IBASE.
No final de 1990, em resposta a demandas de entidades civis interessadas em participar da primeira grande conferência da ONU com participação multissetorial -- A Eco '92, no Rio de Janeiro --, o IBASE procurou a ONU para propor a montagem de uma rede de computadores ligada à Internet nos espaços da conferência. Muitas entidades ambientalistas não poderiam viajar ao Rio e queriam ter acesso aos debates e documentos do evento.
O projeto do IBASE, conhecido como ISP/Rio, foi aceito pela ONU e incluido no Acordo de Sede com o governo brasileiro, depois de mais de um ano de negociações por parte do IBASE (com o apoio informal de funcionários do PNUD em Nova York e o apoio crucial de lideranças da RNP, como Tadao Takahashi), tanto para formalizar esse acordo como para levantar recursos para viabilizá-lo. O Acordo de Sede requeria a instalação de um circuito internacional IP de 64 kbit/s à Internet nos EUA, a ser instalado nas dependências do IBASE. A contraparte nos EUA seria a BARRNet, via IGC (o primeiro sistema da APC a ter uma conexao dedicada à Internet).
Com o Acordo sancionado pelo governo brasileiro, já próximo à data da conferência, membros da APC vieram ao Rio para colaborar na implementação -- era grande o desafio de ativar uma rede em três espaços da conferência (o principal no Riocentro, o espaço da imprensa no Museu do Telefone e o espaço das entidades civis no Hotel Glória e adjacências). A colaboração de especialistas das entidades da APC (baseada no trabalho voluntário de vários técnicos e pessoal de apoio) foi fundamental para que o projeto tivesse êxito.
O projeto Internet da Eco '92 foi um marco fundamental da Internet brasileira, porque quebrou resistências governamentais à abertura de conexões Internet permanentes para a RNP no país. Foi assim que foram ativados finalmente dois canais permanentes de 64 kbit/s com os EUA a partir de São Paulo (FAPESP) e Rio de Janeiro (UFRJ). Do lado do IBASE, um esforço continuou a ser feito para disseminar a idéia da rede, e um projeto de incubação de provedores foi iniciado em 1992, com a conexão de dezenas de serviços de BBS ao AlterNex para troca de mensagens com a Internet. No final de 1994 o AlterNex listava 56 BBSs nacionais e internacionais utilizando o serviço para troca de mensagens com a Internet. Daí nasceu a maioria dos grandes provedores Internet do país.
Os bons resultados do projeto ISP/Rio levaram à repetição da iniciativa pelas equipes da APC (com a participação da equipe do AlterNex) na Conferência de Direitos Humanos de Viena (1993), na Conferência sobre População e Desenvolvimento do Cairo (1994), na Cúpula Social de Copenhague (março, 1995) e na Conferência sobre Mulheres e Desenvolvimento (Beijing, setembro de 1995). Seguindo a filosofia da APC de participar dos processos e não apenas dos eventos no âmbito da ONU, de cada um desses projetos resultaram redes temáticas internacionais de ONGs e um grande acervo de informações oficiais e resultados de debates distribuidos pelos sistemas filiados à rede.
Em 1995, entidades acadêmicas lideradas pela RNP, com a participação do IBASE e de membros do governo federal, formularam a proposta de criação de um conselho nacional de governança da Internet brasileira, para garantir que certos conceitos e princípios fossem seguidos no desenvolvimento da rede no país. Entre eles, a idéia de participação ampla nas discussões da governança da rede, o conceito do nome de domínio de país como patrimônio da comunidade e não uma mercadoria, a noção que a troca de dados entre redes nacionais tem que ser feita dentro do país e não através de espinhas dorsais estrangeiras, e especialmente a visão que a Internet deve ser considerada pela regulação e legislação de cada país como um serviço de valor adicionado sobre os sistemas de telecomunicações -- todas pioneiras a nível internacional --, formaram a base da criação do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), formalizado pelo governo federal em 31 de maio de 1995 juntamente com uma norma que desvinculava a Internet da regulação das telecomunicações -- conhecida como Norma 4.
Hoje, o CGI.br tem em seu conselho representantes de entidades civis, acadêmicas e do setor privado, todos eleitos pelas suas próprias comunidades de interesse. Supervisiona um centro de excelência na administração de nomes de domínio e distribuição de números IP reconhecido mundialmente pelos seus projetos pioneiros de apoio ao desenvolvimento da Internet no país -- o NIC.br --, um exemplo de parceria para atuação comum entre governo e sociedade.
Além da iniciativa de oferecer conexão UUCP a dezenas de BBSs, o IBASE ativou em 1994 em parceria com a RNP o Centro de Informações de Redes para ONGs (CI-ONG), com o apoio do PNUD. O CI-ONG permitiu a formação de jornalistas, estudantes e membros de entidades civis nos vários aspectos do uso e desenvolvimento das TICs e da Internet.
O AlterNex foi extinto mas com base nessa experiência outros projetos foram desenvolvidos -- o RitsNet (da extinta Rede de Informações para o Terceiro Setor) e posteriormente o projeto Tiwa do Nupef.
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[1] Depois da experiência das Filipinas, Foubert mudou-se para Roma com uma obsessão: fazer todo o possível para dar voz àquelas pessoas que a mídia havia silenciado. Assim nasceu a ideia de criar uma estrutura para possibilitar que os povos oprimidos tenham acesso efetivo às estruturas e tecnologias mundiais de informação. Fundou então o IDOC, um centro de documentação internacional e inter-religioso sobre movimentos e lutas de libertação no mundo. Iniciou-se o trabalho de interconexão mundial de grupos de ação e centros de documentação sobre o Terceiro Mundo.
Encontrou neste trabalho o apoio do Conselho Mundial de Igrejas, da Federação Luterana Mundial e do IPS (InterPress Service). A este "alto nível" e trabalho de investigação associou -- atento à sua experiência passada -- um trabalho constante de ajuda aos filipinos presentes em Roma, que encontraram em Foubert um ponto de referência nas suas "viagens de esperança", muitas vezes clandestinas.
O surgimento mundial das tecnologias telemáticas forneceu a este projeto as pernas para avançar efetivamente. Quando a rede Interdoc nasceu, Foubert foi eleito coordenador. Ele trabalhou diligentemente para levar este projeto aos países do Sul e fornecer "assistência técnica" a ONGs e centros de documentação.
Em maio de 1987, durante uma missão da FAO em Serra Leoa, Foubert morreu em um grave acidente de carro. Sua vida e seu trabalho, incansavelmente dedicados a "dar voz" aos povos oprimidos, permitiram o nascimento de muitos grupos que agora, em todo o mundo, seguem seu exemplo. A Interdoc também experimentou formas de integração entre a telemática por cabo e a telemática sem-fio para possibilitar o intercâmbio telemático mesmo em áreas não alcançadas ou mal servidas pela rede telefônica. Em setembro de 1989, a rede Interdoc experimentou uma troca telemática pelo ar entre a Holanda e locais remotos na Bolívia, Colômbia, Quênia e Botsuana.